A Odisseia da Humanidade

Esta poderia parecer uma exaltação de Odisseu, herói grego protagonista na Odisseia de Homero, no entanto, irei antes falar de um outro herói, muito mais remoto: o Hominídeo.

Não era de todo algo que esperava, mas admito que o contador da minha Playstation alerta-me de que já passei mais de 30 horas a explorar as profundezas da selva africana, virtualmente claro. O leitor poderá querer saber porque me entrego com tamanho empenho a um videojogo no qual eu comando uma tribo de Australopitecos que deambula sem aparente missão. A resposta é que estes foram os heróis do passado. Um passado tão remoto que a identidade dos protagonistas se torna irrelevante. Os seus actos heróicos foram a extrema curiosidade, a experimentação e a cooperação, sendo que a sua maior façanha foi a incessante luta pela sobrevivência. Afinal de contas, este é um jogo que cai na categoria de survival games, e a manutenção da existência através da evolução acaba por ser o objectivo maior.

Subi árvores, agucei paus, parti cocos e até combati com crocodilos! Aperfeiçoei técnicas e tudo fiz para que passassem de geração em geração. Fiquei tão envolvido na evolução destes Hominídeos que dei por mim, há dias, nas ruas de Lisboa a contemplar elementos da paisagem que remetiam para o jogo: “aquele recanto no jardim daria um bom abrigo…” ou “este ramo caído seria muito útil para caçar!”, por outras palavras, permiti que a fantasia inundasse o meu olhar. Como se não bastasse, decidi complementar esta jornada digital com a leitura do clássico de Desmond Morris: o Macaco Nú.

Já expus os contornos mitológicos desta minha aventura virtual, mas o que tem tudo isto a ver com com a Arte-Terapia, com a Psicoterapia ou com a Saúde Mental? Para responder à questão podemos resgatar a teoria do pediatra e psicanalista Donald Winnicott, em especial o que postulou no livro O Brincar e a Realidade. Por norma, vemos o brincar como uma dimensão quase exclusiva das crianças, no entanto, para Winnicott o brincar também reside no adulto, manifestando-se em formas como o humor, no lazer e no jogo.

Donald Winnicott

O brincar não só é prazeroso como satisfaz, remetendo assim para a área da saúde. Referiu Winnicott que “é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde”, acrescentando ainda que “é com base no brincar, que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem”.

Embora o psicanalista britânico se tenha debruçado sobretudo na criança (e na relação mãe/criança), as suas descobertas são também aplicáveis ao adulto. Quando nos envolvemos em processos criativos estamos a activar certos processos que, numa criança, se poderiam identificar como característicos do brincar. Assim, com o comando da Playstation na mão e olhos no ecrã, entro num “espaço” de novas possibilidades onde deixo de ser apenas o Francisco e me torno um Hominídeo. As façanhas da minha tribo, eventos completamente virtuais, são sentidos com prazer e satisfação, podendo ser até análogas de experiências reais (por exemplo: o Hominídeo aprende a caminhar sobre as duas pernas). Por outro lado, a liberdade para explorar, para controlar o próprio rumo e desenvolver a personagem ao meu gosto permite “ensaiar” movimentações da vida real. Qual o equivalente, na vida real, àquilo a que me propus a atingir no jogo? Ao que equivale, na vida real, o prazer da exploração da floresta virtual? São questões que emergem deste faz de conta, desta longa odisseia da humanidade.

“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem na sua liberdade de criação”

— Donald Winnicott

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